Texto de Rafael Trindade

Como pode alguns dizerem que a ignorância é uma bênção? Como é possível que alguns critiquem a filosofia por dizer que o conhecimento traz apenas consciência de nosso sofrimento? É para responder a estas perguntas que escrevemos este texto. De que serve o conhecimento? Ora, dirá Espinosa, o conhecimento é o mais potente dos afetos! Uma Ética do conhecimento se contrapõe diretamente a uma moral da obediência. Para Espinosa, conhecer os afetos racionalmente é a possibilidade de encontrar a liberdade. Os afetos, como descrito no livro III da Ética, são a transição de um estado de perfeição para outro. Não é uma experiência necessariamente intelectual, apesar de podermos formar ideias sobre elas. Se o corpo é uma dinâmica de forças que possui a capacidade de manter-se, então os afetos são essas variações que a força efetua encontrando-se com o mundo.

Conhecimento parte do corpo, um corpo que sente, que é afetado, que está no mundo, cercado por outros corpos. Como corpo e mente são um só, conforme a mente entra em afinidade com o mundo ao seu redor, podendo explicá-lo de forma adequada, o corpo se torna mais capaz de agir no mundo. As ideias dão prova da variação contínua do conatus, quando estamos fracos, são as piores ideias que nos vem à cabeça, quando nos sentimos fortes, estas ideias simplesmente vão embora. Ou seja, a mente observa seu próprio corpo em ato. O pensamento forma ideias, conceitos, que são nossas ferramentas para a vida, para bem nos conduzir-mos. Ou seja, o conhecimento intelectual é igual ao conhecimento afetivo. Segundo Espinosa, não é possível alcançar a liberdade sem este conhecimento! E não podemos conhecer sem antes nos debruçarmos sobre os afetos.

Mas precisamos antes sair deste conhecimento inadequado no qual estamos presos. Vivemos em superstições, com medos irracionais. O conhecimento de primeiro gênero é confuso porque ainda muito impotente, incompleto, pequeno em sua capacidade explicativa. Sim, o Sol parece girar em torno da Terra e parece ser pequeno, isso é positivo porque é o que chega aos nossos sentidos. Mas não temos conhecimento de ótica e do movimento dos planetas para dizer, com segurança, que o Sol na verdade é milhares de vezes maior que a Terra e que esta que gira em torno dele. As ideias inadequadas se formam à nossa revelia. Aqui ainda somos passivos, confusos. O “conhecimento pelo conhecimento”, aquele que não nos afeta, não é capaz de nos mostrar caminhos éticos. Assim como simplesmente saber o que é certo e errado não é o bastante para vencer os afetos contrários à razão. É preciso experimentar o quanto a razão é útil para se bem coduzir a vida, é este caminho que percorremos junto com Espinosa.

Muitas coisas podem distrair a mente, somos escravos de muitos afetos que não nos são úteis. Mas nos iludimos, o primeiro gênero do conhecimento admite os efeitos sem entender as causa. Nos disseram que devemos trabalhar muito, mas não nos disseram exatamente por que. Disseram que precisamos acreditar em tudo que está escrito na bíblia, mas não nos mostraram como isso pode ser útil. Os comerciais na tv nos fizeram acreditar se só seremos felizes com uma família tradicional, um emprego de terno e gravata e um carro na garagem. Ficamos sentados, hipnotizados, consumindo passivamente todas estas figuras de saber. Mas conhecer não é o bastante, é necessário se perguntar que afetos atravessam este conhecimento. Como conhecer ativamente? Como sair das ideias inadequadas? Pelos afetos! E há, segundo Espinosa, apenas um afeto capaz de nos tirar da ignorância das causas e efeitos e nos elevar ao pensamento racional: a alegria.

Se os corpos estão em relação contínua, podemos observar as variações que eles causam em nosso corpo. Quais corpos nos trazem felicidade? Quais convém conosco? O conhecimento é a compreensão da relação entre os corpos, de que maneira eles convém e não convém, como interagem entre si. Ou seja, há um interesse por trás do desejo de conhecer: o desejo de conservar-se, de encontrar o que é útil. Aquilo que convém será chamado por Espinosa de alegria, é o que há de comum entre os corpos, quando eles estabelecem relações. Aí está, o desejo encontrou o que procurava, e através destas conexões que nasce o conhecimento racional/afetivo. A noção comum é a conveniência entre uma parte e o todo. Isso me convém significa dizer “há algo de comum entre meu corpo, que é uma parte ínfima da substância, e este corpo exterior”. Algo se produz, algo se conecta. Há um aumento da intensidade. O corpo é capaz de selecionar os encontros conforme seu conhecimento aumenta.

O desejo que nasce da alegria é mais forte que o desejo que nasce da tristeza, porque o primeiro aumenta a nossa capacidade de conhecer e agir, enquanto o segundo a diminui. Este desejo faz parte da mente e do corpo, os dois crescem juntos e é compartilhável com outros. Vemos como, pouco a pouco, os conceitos começam a se encadear. O conhecimento é afetivo, ele nasce do desejo de conservar-se, conatus, e possui uma utilidade ética, a busca pela beatitude.

O conhecimento de segundo gênero é maior que o de primeiro, mais potente, possui maior capacidade explicativa e dá conta de uma variedade maior de causas e efeitos. Na razão somos mais potentes. Por isso o esforço contínuo de Espinosa para corrigir o intelecto e sair da superstição! O conhecimento da natureza, sua observação atenta, para entender suas relações, tira o homem das ficções que ele forja na ignorância das causas e efeitos. Sim, porque conhecer, para Espinosa, é conhecer pela causa! O objetivo é mostrar como podemos e devemos conhecer. O conhecimento está na relação que estabelecemos, acontece no e pelos afetos. Conhecer é poder fazer parte da relação entre o todos e as partes. Por isso precisamos procurar sempre pela causa genética: o porquê daquilo ser como é. E o mesmo vale para nós: uma psicologia espinosista procurará sempre pela causa da qual somos efeitos.

As ideias adequadas dão prova contínua de sua potência. O sábio pode mais, vai mais longe, é mais capaz, sua virtude de agir é igual à sua capacidade de pensar! Ao contrário da figura tradicional de sábio que conhecemos, fechado em seu mundo de ideias, praguejando contra o mundo. Ao sábio insensível e afastado do mundo, Espinosa propõe uma figura de intelectual sensível, forte e flexível, capaz de muitas coisas. Nele, a razão mostra seu contínuo aumento de potência, substituindo as ideias confusas pelas adequadas e transformando a servidão em liberdade. O sábio é causa de si!

É por isso que o conhecimento só pode ser considerado em sua plenitude quando ele toma parte nos afetos. É pelo desejo que o homem se torna racional, é pelo esforço do ser de conservar-se a aumentar a sua capacidade de agir que a razão toma parte nos afetos do homem. Por isso Espinosa nunca fala contra os afetos! Apenas contra a servidão, contra a superstição, contra a ignorância. Os afetos são essenciais, eles são parte inalienável do ser humano, a natureza do homem se afirma nesta variação da potência.

O objetivo de Espinosa é mostrar como a razão pode tornar-se também um afeto. Este ponto é essencial, pois o filósofo holandês subverte quase todas as figuras de conhecimento! Razão e emoção não são opostos? Não na filosofia espinosista… a razão precisa da emoção para tornar-se efetiva e a emoção pode conduzir-se muito melhor com ajuda da razão. por ser parte de uma única substância, mente e corpo simplesmente não podem estar separados. A razão não flutua em um espaço metafísico, ela é uma força de afirmação de uma ideia. Uma ideia mais clara, que encontra as relações de causa e efeito na imanência e que, por isso mesmo, é útil para o homem conservar-se. Desejo e razão reconciliados! À razão, é bom tonar-se afeto, aos afetos, a razão mostra bons caminhos. Como o conhecimento, que é a potência da mente de pensar, pode tornar-se mais poderoso que os afetos que vêm de fora? Tudo tem uma mesma raiz: o desejo. Por isso nossa busca é por entender o que desejamos e desejar o que compreendemos. A razão pode reordenar os afetos, moderá-los, entrar em harmonia com eles. A potência interna da mente produz um conhecimento adequado, estável, confiável.

Esta razão, dentro das possibilidades limitadas do homem, oferece relações. Uma ética não se constitui de leis que podem ou não podem ser quebradas, não se trata de linhas que cruzamos para cair em uma culpa, uma infração. A Razão encontra medidas, onde uma ética pode nascer, não é mais uma relação de proibido/permitido, mas sim de conveniência. Há uma profunda diferença entre moral e ética que o conhecimento torna clara. A Ética nasce de afetos alegres, de um plus e potência, de uma profunda ligação e confiança na vida. Diferente da moral que se alimenta de afetos tristes. O conhecimento dos afetos nos tira da moral e nos insere no campo da ética. Conhecer claramente uma paixão retira seu caráter misterioso e nos permite lidar de outras formas com ela.

Há em Espinosa uma transmutação dos afetos. Uma apologia ao uso prático do corpo, um convite à experimentação. Afinal, o conhecimento nos abre tantas possibilidades! Se os afetos ligam-se à razão, ao conhecimento, para tornarem-se mais potentes então, ao mesmo tempo, eles nos abrem muitos caminhos novos! A aliança entre mente e corpo, emoção e razão é uma das experiência mais potentes que o ser humano pode desejar, o pensamento abre para o fora, para o novo, para a produção de novos sentidos. Esta relação se atualiza constantemente em nossa vida diária, um conhecimento prático, uma arte dos encontros, que em cada nova experiência pode pôr-se à prova e aprimorar-se.

Claro que esta busca é árdua! Um caminho infinito! Mas onde o objetivo está nele próprio, não na chegada porque aprender a viver, é útil em si mesmo. Precisamos viver as possibilidades afetivas que a razão nos oferece, apreender os novos valores que brotam desta relação. Para conquistar a liberdade não podemos mais nos trancar em uma torre de marfim e dizer que a ignorância é uma bênção! Pelo contrário, com Espinosa vemos que a razão e a felicidade estão ao alcance de todos. E a razão é nossa melhor ferramenta para a busca desta beatitude, desta alegria, destes bons encontros. A razão é instrumento da virtude, ela é uma forma que o desejo assume neste esforço, chamado de conatus, para conservar-se e crescer. Este esforço conta com o conhecimento racional e intuitivo, onde finalmente atinge velocidades altíssimas, que nós nunca imaginávamos alcançar! Que grande alegria, o conhecimento é, realmente, o mais potente dos afetos.







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