Por Erick Morais
Ao longo do século XIX, a ciência se desenvolveu muito, promovendo um grande progresso para a sociedade. Nesse contexto, temos o erigimento de correntes de pensamento, como, por exemplo, o Positivismo, que acreditava que o progresso visto na sociedade, a partir das descobertas científicas, levaria o mundo a um grau inigualável de desenvolvimento. Isto é, passa-se a ter uma crença total na ciência e na razão como forças máximas e absolutas, axiomas inquestionáveis, responsáveis por levar a sociedade a um estágio superior.

Nesse mesmo contexto, surge a obra “O Alienista”, do bruxo do Cosme velho, Machado de Assis. Na obra, com todas as características machadianas: ironia, ceticismo, metáforas, etc.; temos a construção de uma crítica ao saber que estava se formando e, consequentemente, suas imbricações. Obviamente, o livro possui inúmeras interpretações, haja vista a sua riqueza. Entretanto, vamos nos ater ao porquê da crítica de Machado ao cientificismo da época e a relação com a loucura apresentada no conto.

Todo saber que se pretende universal e absoluto, ou seja, sem direito a contestações e outras interpretações, é perigoso, pois desconsidera a pluralidade humana e, por conseguinte, a subjetividade de cada um, o que pode acarretar análises amplas e distintas acerca das coisas. Como um homem à frente do seu tempo, Machado conseguiu perceber isso de forma muito clara e, dessa maneira, constrói uma história que satiriza e demonstra os perigos de se estabelecer um saber centralizado e absoluto que reina como um déspota.

Ao estabelecer verdades absolutas a partir de um único ponto de vista, cria-se um sistema determinista, já que há o enquadramento de todos os agentes sociais dentro do mesmo prisma. Vale ressaltar que o Positivismo e teorias como o Darwinismo social consideravam que existiam pontos de maior e menor evolução na sociedade, sendo os europeus o povo mais evoluído e civilizado, ao passo que africanos, asiáticos e americanos eram povos menos evoluídos e atrasados. Cabia, assim, ao homem branco europeu a missão civilizatória de levar luz a sociedades que viviam em trevas. Era o “fardo do homem branco”, assumido com muita “coragem” e responsável por milhares de mortes e arbitrariedades contra outros sujeitos que também eram humanos (ou, pelo menos, deveriam ser).

Desse modo, observa-se que o saber científico que elevaria a sociedade mundial ao grau máximo de desenvolvimento, tornou-se propagadora de ideias segregacionistas, racistas e violentas contra o homem, contrassenso de qualquer evolução que se pretenda. Apesar de teoricamente superado, esse pensamento ainda possui resquícios na contemporaneidade e influencia o comportamento atual, vide o racismo e a intolerância religiosa (temas, inclusive, do Enem em 2016, o que ratifica a sua atualidade). Posto isso, há de se considerar o caráter visionário de Machado, percebendo precocemente falhas naquele sistema, que à época era admirado por todos.

O grande problema do saber criticado por Machado e, de qualquer outro que se pretenda axiomático, reside na sua incapacidade de relativizar as problemáticas. Ou seja, na impossibilidade de considerar que possam existir outras verdades, outros pontos de vista, outras interpretações para a mesma questão. Tudo se torna mecânico, padronizado, dogmatizado, resguardando a um juiz o arbítrio de tudo segundo a sua cosmovisão e sem direito a salvaguardas. Esse juiz na obra é Simão Bacamarte, o alienista, que determina o certo e o errado, o normal e o anormal, a sanidade e a loucura.

A loucura era o diagnóstico de todos os que não estavam no momento enquadrados no padrão de sanidade. A loucura, então, é utilizada no conto não apenas para satirizar as falhas do saber científico absoluto, mas também para demonstrar o segregacionismo provocado pelas verdades absolutas, em que por meio do arbítrio do sistema dominante há o julgamento e a separação entre os sãos e os loucos. Dessa forma, os loucos são os inadequados sociais, uma vez que basta o sujeito se enquadrar em um perfil de comportamento desviante determinado pelo médico para ser considerado louco e, consequentemente, ser internado.

A loucura, nesse contexto, se conceitua como o afastamento de uma norma psicossocial estabelecida, de modo que basta que o sujeito se afaste dela para ser reconhecido como louco. Em outras palavras, o diagnóstico se dá sempre em relação a uma ordem de normalidade, no caso do livro, esta é determinada pelo alienista. Ainda nesse sentido, Foucault diz que a razão necessita da loucura para existir propriamente enquanto razão. Ou seja, é preciso definir o caminho a não seguir para que se crie os muros de proteção da sanidade.

Assim sendo, a loucura no conto é utilizada por Machado para satirizar o cientificismo e demonstrar que a “loucura”, nesse prisma, é determinada de forma arbitrária por alguém investido de um poder absoluto, valendo destaque rapidamente nesse ponto (daria um outro texto) para o verbo “investir”, uma vez que o Dr. Bacamarte recebia da câmara a autoridade para os seus desmandos, demonstrando a imbricação que existiu e existe entre o saber científico (sentido amplo) e a ordem política, em uma relação de troca de legitimidade e normatização.

Ao criar uma obra tão rica, Machado vai além de seu tempo e se contextualizado para a contemporaneidade, percebe-se que ainda persistem sistemas que se pretendem ou se estruturam como verdades absolutas, em que a loucura é o diagnóstico definitivo para os que não se encaixam ou questionam a ordem estabelecida, como acontece na sociedade de consumo e seus inúmeros protocolos que devem ser seguidos à risca, afinal, há sempre Simões Bacamartes prontos para trancafiar os perturbadores da ordem em uma casa verde, a fim de evidenciar a loucura existente nestes.

No fim da obra, o alienista, então responsável por detectar os doentes e libertá-los do seu estado de alienação, acaba chegando à conclusão de que ele era o louco, o alienado, e trancafia-se na casa verde. Mas, se, como disse, os Doutores Bacamartes permanecem, há de convir que ser atestado como louco é o maior sinal de sanidade.







Poderia dizer o que faço, onde moro; mas, sinceramente, acho clichê. Meus textos falam muito mais sobre mim. O que posso dizer é que sou um cara simples. Talvez até demais. Um sonhador? Com certeza. Mais que isso. Um caso perdido de poesia ou apenas um menestrel caminhando pelas ruas solitárias da vida.