Das aflições humanas, remorso e arrependimento acarretam geralmente nos campos da realidade crua e nua da senhora culpa. Senhora esta um tanto quanto severa, pois a cobrança que ela nos faz é provavelmente geradora de impotência e vergonha arrebatadoras. Isto é explicável pelo fato de que com a certeza da culpa, temos a noção de que cometemos um erro, e errar muitas vezes é assumir uma infração não só prejudicial a si, mas a um todo envolvendo o mundo ao qual estamos inseridos, aquele onde estão as peças de nosso quebra-cabeça enquanto ser.

O remorso parte do pressuposto em que se está arrependido e ciente da ação errônea que tomamos em uma determinada situação. Ele em si vai corroendo o pensamento por dentro, friccionando um rememoriamento da situação em nosso psicológico, bem como o que ocorreu e os seus desdobramentos negativos. Com o remorso internalizado, nos tornamos nosso próprio carrasco, fazendo a sensação ainda mais cruel e perversa, pois a lembrança da culpa vem atormentar em pequenas doses venenosas no cotidiano. Assim, se importunar pelo ato falho é uma penitência constante, punição exemplar para o crime de errar sem a absolvição do juiz mais impiedoso para o caso: nós mesmos.

A conta-gotas, este remorso dos atos do passado expõe flagelos de uma persistente angústia vivenciada no presente. Preso eternamente no temor de falhar novamente, o ser humano se resguarda excessivamente, omitindo-se por muitas vezes no agir, derivando numa pequenez frente as novas adversidades que por ventura surjam em seu caminhar. Buscamos as mais variadas explicações pelo ocorrido, num devaneio mental de volta ao passado inútil, tentando atenuar ou mesmo evitar acontecimentos específicos e o que acarretou a falta cometida lá atrás em nossa linha do tempo.

Eis que neste imbróglio existencial passamos a atuação nada agradável do protagonista mártir. Na peça de teatro da vida, exercemos o papel de autoflagelar-nos de maneira persistente, abrindo chagas expostas à inércia de deixar a culpa jogar em nossa face todos os pormenores e efeitos nada benfazejos. São as agulhadas incômodas que penetram nos campos mais internos da psique humana, desestabilizando em boa parte as percepções que temos sobre tudo e o todo. Emoções e pensamentos se confundem numa desordem do sistema, onde se fundem numa massa cinzenta disforme sem nenhuma aparente explicação óbvia do que as coisas são ou deixaram de ser.

Na vivência dos excessos de cobrança e resultado, o martírio é exercido quase como ocupação corriqueira. O que concebemos pelo remorso do passado é realçada a uma angústia do presente. É levantado um maquinário de concepções obtusas, ideias estapafúrdias pinceladas por pensamentos obsessivos, carregados de paranoias não condizentes com a realidade. Eis então que acontece o pior nesta situação: resignar-se com o martírio, ou seja, acostumar-se a sofrer inutilmente por algo que já ocorreu e que não tem volta, pois máquinas e feitiços do tempo ainda são apenas verdades presentes em livros de ficção.

A angústia nos impede, comprime os movimentos de tempo e espaço a um pequeno cárcere privado mental. Ela trancafia em uma prisão de segurança máxima as vontades e potência necessárias para que experienciemos as atividades humanas. Vai aos poucos dificultando, e quando atinge um ponto excruciante, minam nossa criatividade e produção. Vamos apenas repetindo tarefas e outras ocupações onde o pensar em prática inexiste, já que automatizar ações faz com que reflexões não aconteçam e assim não se sofra.

O anseio pelo futuro vira a ordem do dia. Velhos demônios vem nos anunciar possíveis desconfortos e outros predicados, valendo-se de nossos sombrios temores e medos recorrentes de nossa relação com o senhor remorso. É a recorrente expiação, toda esta culpa acumulada vai premeditar numa falsa pré-condição de fracasso futuro, onde a esperança de superação é na prática inexistente. Aí está um paradigma dos mais funestos geridos pelo martírio e remorso: Dos arrependimentos do passado, passamos a não viver o presente e por ventura, condenamos o nosso futuro.

Numa sociedade imediatista onde cada vez mais laços, raízes e bases firmes são raridades, em que a liquidez do tempo é exercida fortemente, a persistência de usar o passado para determinar o futuro é o mal-estar vigente. O passado já ocorreu e é imutável, o futuro está distante e não se tem certeza do acontecer e seu modo de operar, mas o presente, este sim está ao alcance, passível de alteração e modificação. A melhor maneira de se resolver o passado e vislumbrar o futuro, é encarar o presente.







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