Literatura

Florbela Espanca — A mulher fora de época, seu irmão e a última carta

Por Joilson K. Rodrigues

Florbela tinha no peito um coração inquieto, que batia em desassossego, moradia de fantasmas dos amores que ela abrigara um dia, mas que os despejara sem remorso. Viveu
fora de época, como uma flor atrevida que se abre antes do tempo, quando a luz da liberdade feminina sequer faiscava num horizonte distante. E o amor dos homens, que pesou-lhe sobre os ombros da alma, cada um deles, foi arriado ao chão como um fardo que não vale o esforço de carregar.

Só o amor de seu sangue tinha a leveza dos amores puros, o amor que era seu, mas que pulsava em outro coração. O amor de Apele. O sangue era o mesmo, talvez também fosse
uma só alma para dois corpos, e assim se tornaram a lenda dos amantes de um mesmo ventre, a mesma pele ardendo em ambos. A lenda do amor profano, dos irmãos que se desejavam com a febre das carnes ansiosas, afrontadores ousados dos santos terrenos.
Mas esse amor não tinha esse tom, nunca teve nem o peso dessa culpa.

Os santos terrenos, que são gentes de pecados, nunca a perdoaram por sua ousadia de mulher, seu descabimento atrevido de querer ser dona do seu destino. Os homens santos, que sabem pecar discretamente, inventaram a lenda para macular o mito. Mas aos ouvidos
dos justos a lenda soou bonita, o que importava era que o amor prevalecera, em qualquer que fosse o tom, qualquer jeito, o amor prevalecera.

Quando Apeles se foi, o laço doía uma dor de frouxidão, de quem se desamarra sem querer se desatar. Era a dor do coração vazio, da solidão da cadeira sem par, da vida sem par e sem poesia. O mundo se descoloria da única cor que se pintara um dia, agora tudo era cinza e saudade.

O coração de Florbela, agora quieto, sofria de mais dores, uma infinidade delas. O peito murmurava as paixões impossíveis e os amores desfeitos, o corpo se acudia das dores com venenos, que demoravam no efeito desejado. A insonia fazia sonhar com o sono do tempo eterno, ate que, por fim, adormeceu para sempre no dia oito de dezembro de 1930.

Carta de Florbela Espanca ao professor italiano Guido Battelli 

Mat., 3-8-1930

Meu querido amigo,
Finalmente instalada e um pouco refeita da fadiga da viagem, venho agradecer-lhe a sua última carta recebida em Évora.
Já tinha saudades de conversar consigo. É assim um católico tão convencido? Eu não sou católica, como não sou protestante nem budista, maometana ou teosofista. Não sou nada. E nem sequer poderá servir-me o preceito divino: Aquele que me procura, já me encontrou, porque eu não procuro… O meu racionalismo à Hegel, apoiado numa espécie de filosofia à Nietzsche, chegou-me por muito tempo. Hoje… a minha sede de infinito é maior do que eu, do que o mundo, do que tudo, e o meu espiritualismo ultrapassa o céu. Nada me chega, nada me convence, nada me enche. Sou um pobre que nenhum tesoiro acha digno das suas mãos vazias. A morte, talvez… esse infinito, esse total e profundo repouso; não me queira tirar a certeza de que ela é tudo isto: seria uma maldade, quase um crime. Pense bem: eu, que não sei o que é dormir uma noite inteira, dormir muitas, dormir todas e todos os dias e todos os anos, pelos séculos dos séculos! Só esta ideia me faz sorrir. Deve ser tão bom!
Não sei o que há em mim que me envenena todas as horas da vida. Posso dizer como Duvernois: “Ma vie c’est une promenade de prisonnier dans un chemin de ronde. Je tourne et ne vois que des murs…” Às vezes, parece que tenho qualquer missão a cumprir, qualquer coisa a fazer; mas não sei o que é, não compreendo, e esta inquietação mina-me, rói-me; esta interrogação, esta contínua busca, cada vez mais ansiosa, dentro de mim mesma, desvaira-me. Estou hoje num dos meus dias maus, não lhe devia escrever; mas, erguer todos estes fantasmas em frente da sua alma compreensiva e boa, da sua alma amiga, é um alívio e um refrigério. Perdoe o egoísmo à sua pobre Soror Saudade; hoje mais Soror Saudade do que nunca. Às vezes sinto em mim uma elevação de alma, o vôo translúcido duma emoção em que pressinto um pouco do segredo da suprema e eterna beleza; esqueço a minha miserável condição humana, e sinto-me nobre e grande como um morto. É um instante… Tudo depois é tão vago, de tal maneira solto e impreciso, de tal forma inerte e passivo, que tenho a impressão nítida de ter vindo de longe cumprir a pena do crime de ter nascido. E de todas as minhas tristezas não tenho tirado nada. Boa? Não sei… creio que não. Perdoo facilmente as ofensas, mas por indiferença e desdém: nada que me vem dos outros me toca profundamente. O amor! Ah, sim, o amor! Linda coisa para versos! A minha dolorosa experiência ensinou-me que sou só, que por mais que a gente se debruce sobre o mistério duma alma nunca o desvenda, que as palavras nada exprimem do que se quer dizer e que um grande amor, de que a gente faz o sangue e os nervos e as próprias palpitações da nossa própria vida, não passa duma pobre coisa banal e incompleta, imperfeita e absurda, que nos deixa iguais, miseravelmente iguais ao que éramos dantes, ao que continuaremos a ser. Então… para quê?…
Tenho imensa pena de lhe não poder dizer, com verdade, que sou feliz. Lembre-se de que eu sou um canceroso: podem as várias morfinas aliviar-me, curar-me nunca. Estou doente, tenho os nervos destrambelhados. Apetecia-me agora estar longe, longe, nesse claustro de Santa Cruz da sua linda Florença. Soror Saudade sentir-se-ia ali no seu lugar; a triste monja sem fé encheria o olhar da luz suave e amortecida, toda em sedas pálidas, que a tardinha lhe trouxesse, como um divino milagre, ao seu coração chagado. Soror Saudade quereria não pensar, sobretudo não pensar, quereria poisar as mãos, devagarinho, no rebordo duma taça de mármore onde dormisse um pouco de água limpa e contemplar, entre os muros do claustro, o céu, lá no alto; em campo azul, um heráldico pombo branco, enquanto lírios muito roxos, a seus pés, inclinassem a cabeça a meditar… O meu grande amigo dirá antes que Soror Saudade precisa, indiscutivelmente, duma cela em Rilhafoles…
Gosto imenso do seu grande Ruben Darío. Mas também são dele estes dois belos versos:

“Pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo,
Ni mayor pesadumbre que la vida consciente”.

Os meus progressos em italiano! Si on peut dire… Mereço não 16 mas 0, ou ainda mesmo alguns décimos abaixo de 0. É muito difícil, muito, muito difícil. Eu é que tenho que lhe dar os parabéns pelo seu óptimo português: Bravo! Muito, muito bem! Achei graça à dificuldade do burel e do mel. Que trabalhos por minha causa, e que bondade a sua em se interessar assim por um bichinho tão pouco interessante como eu sou!
Guardo carinhosamente a promessa da sua visita. Que não fique apenas em promessa… Depressa, sim?
Fez muito bem em ter dormido como um anjo, pois a causa da insónia seria uma ilusão como muitas… A minha boca é isso tudo só em verso… na realidade é pálida, fria e inexpressiva como a boca duma velhinha morta.
Tinha assim um tão grande desejo que o Cristo bizantino o remoçasse? Que ideia! Para quê? Eu quereria antes que ele me envelhecesse vinte anos num só dia. Vinte anos! Tanto tempo! Que farei eu ainda de vinte anos, meu Deus?! Tanto, tanto tempo!…
Envio-lhe os meus dois últimos sonetos. Tenho ultimamente trabalhado bastante. Charneca em Flor está pronto, visto e revisto, e não me parece mal. Que dirá o Mestre?…
E adeus, um adeus que eu espero seja um “até breve” muito feliz.
Bela

 

 

Em 18 de junho de 1930, seis meses antes de sua morte, Florbela Espanca passou a se corresponder por cartas com o professor italiano Guido Battelli, que tinha na época 62 anos de idade.

Em outubro daquele ano ela deixa transparecer que estaria apaixonada por um advogado da cidade do Porto, chamado Ângelo César.

Menos de dois meses depois ocorreu sua segunda tentativa de suicídio com barbitúricos, na passagem de 7 para 8 de dezembro, precisamente às duas horas da madrugada do dia 8, hora exata em que nasceu e no dia em que completava 36 anos de idade.

Florbela morreu em virtude da overdose de barbitúricos, todavia, a certidão de óbito, passada com base nas declarações do carpinteiro Manuel Alves de Sousa, e não no testemunho de algum médico, atesta que Florbela morreu de edema pulmonar às 22 horas do dia 7 de dezembro. (Sua primeira tentativa de suicídio foi em agosto de 1928, em virtude de sua paixão por Luiz Maria Cabral, médico e pianista. Florbela utilizou soporíferos em sua primeira tentativa).

 

Do livro Florbela Espanca AFINADO DESCONCERTO (contos, cartas, diário). Coleção Vera Cruz. Organização: Maria Lúcia Dal Farra. Editora Iluminuras, SP, 2002.

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