Caio Fernando Abreu (1948-1996) foi um escritor, jornalista e dramaturgo brasileiro, considerado um legítimo representante da geração que marcou a cena cultural do país nos anos 80.

Em 1982, Caio Fernando Abreu lança sua obra mais popular que o tornou conhecido: “Morangos Mofados” é um livro de contos que são verdadeiros curtas-metragens sobre a grande metrópole e os zumbis que habitam suas áreas de penumbra. No melhor livro do autor, ele encontra a medida justa para expressar a tragédia de uma geração entre o sufoco, a solidão isolada ou compartilhada, combatida a golpes de bebida, drogas, sexo hétero e homo, ou fuga suprema pela opção do suicídio.

Caio é uma das figuras mais importantes da literatura LGBTQIA+ brasileira, sempre dando voz a seus sentimentos e abordando temas tabus como a AIDS e a homossexualidade. Em 1993, quando trabalhava no jornal O Estado de São Paulo, descobriu ser portador do vírus HIV e corajosamente decidiu escrever sobre sua vivência em crônicas publicadas pelo jornal semanalmente. Essa série de crônicas é formada por três cartas e se chama Cartas para Além do Muro. O escritor faleceu em decorrência da AIDS em 25 de fevereiro de 1996, em Porto Alegre.

“Saio dessa mais humano e infinitamente melhor, mais paciente — me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé. (…) Tudo me parece muito lógico: que outra morte eu poderia ter? É a minha cara! (…) Só choro às vezes porque a vida me parece bela. (O sol. As cores. As coisas) Mas é de emoção, não de dor. Tá tudo certo.” (trecho da carta a artista Maria Lídia Magliani)

“Nos últimos tempos, quando não conseguia mais escrever, ele ia para o jardim cuidar das rosas. Ia cuidar da vida: tirar da terra a vida – e o Caio morrendo. Fazer desabrochar a flor – e o Caio morrendo. Num planeta enfermo como o nosso, num país, numa sociedade onde impera a boçalidade, a volúpia materialista, foi magnífico contar com o Caio.”
– Lygia Fagundes Telles, em homenagem ao amigo Caio F. Abreu (quando ele partiu).

pensarcontemporaneo.com - ‘A morte dos girassóis’ – um conto maravilhoso de Caio Fernando Abreu

Leia o conto “A morte dos girassóis”

Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”

Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.

Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.

Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.

Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro.Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.

Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.

Publicado no livro “Pequenas epifanias”. Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014.

Recriado a partir de Revista Prosa Verso & Arte







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