Vivemos em tempo de dualismos e posicionamentos extremos. Para Mia Couto, trata-se de uma característica própria das culturas urbanas ocidentais, e que foi incorporada ao pensamento de nações colonizadas. No vídeo abaixo, (do canal Fronteira do Pensamento)  o escritor moçambicano reflete sobre o desafio de descolonizar o pensamento, as identidades mistas de populações como a de seu país, e a busca por meios-termos.

“Essa maneira de ver o mundo, que creio que está à procura de dicotomias, está à procura daquilo que é a essência do ser, de cada um… não é que está impactando hoje. Isso é uma construção que tem séculos, não é? E que, infelizmente, os próprios africanos estão, digamos, se apropriando, incorporando. Isso já é uma coisa que tornou indígena hoje, não é? Nas culturas urbanas, esse tipo de pensamento já é próprio, não é uma coisa de fora. E essa colonização do pensamento, das formas de pensamento é mais difícil, primeiro, de identificar, de descobrir, depois, de erradicar, porque é fácil falar de coisas que nos parecem exteriores.

A política, é preciso descolonizar a política, é preciso descolonizar a economia etc.
As formas de relação internacional. Mas quando se trata de descolonizar o pensamento, aí é muito mais complexo porque essas elites, que digamos, se deixaram assimilar por essas formas de pensamento não querem abdicar disso e encontram nisso uma forma de poder.

Portugal sempre teve essa tentação… não era porque fosse melhor ou pior, mas porque não tinha capacidade de presença. Então, ele tinha que atribuir essa função ao outro. E, no caso de Moçambique, atribuir essa função aos que vinham da Índia, de Goa, da maioria dos territórios que eram chamados para administrar, para produzir o sistema português em Moçambique.

Mas também eles perceberam, digamos assim, a colonização portuguesa percebeu que tinha que criar nos indígenas de Moçambique, num grupo muito restrito, essa função de reprodutores de um sistema. Isso já é antigo.

Mas eu acho, por um lado, eu acho que aquilo que são as culturas de Moçambique, elas têm uma enorme resistência para isso, quer dizer, eu falo de uma elite que se apropriou e realmente se transformou numa coisa que é, uma espécie de entidade mestiça, cosmopolita.

Eu não vejo isso como um grande pecado. Pronto, aconteceu… ninguém tem identidades puras, mas… da parte das outras culturas que têm uma raiz rural, é muito forte essa negação desse dualismo, dessa dicotomia. Por exemplo é muito comum em Moçambique dizer-se “isto quase é” , o verbo “quaseser”, que é uma solução entre essa coisa dualista. às vezes eu pergunto “essa cobra é… má?” Eles respondem assim: “quase é”. Que é uma forma muito feliz de descobrir um meio termo, alguma coisa que está… Shakespeare gostava de ter percebido isso, quando ele fez a grande pergunta dramática: ‘Ser ou não ser, eis a questão’.”

Assista ao vídeo:

 

Matéria extraída do canal Fronteira do Pensamento







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