Via Fronteira do Pensamento

“Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.”

Uma poesia pode mudar uma história. Fernando Pessoa mudou a de Mia Couto, que sempre surge com uma luta que marca a obra do moçambicano: a construção da alma poética.

Se formos analisar a recepção dos escritos e falas do autor, teremos que nos curvar à batalha, porque cada vez que Mia Couto aparece com suas mensagens repletas de sabedoria, o público para e assiste. E aplaude.

Mais ainda, foi por este motivo que o convidamos para uma aula muito especial, em que o Fronteiras Educação reuniu três mil jovens para ouvir as lições deste precioso professor. Da nossa parte, fica a expectativa de que sua poesia tenha mudado muitas outras vidas nestes encontros.

Reunimos algumas das respostas que Mia Couto nos concedeu ao longo deste tempo, para você, neste conteúdo especial. O moçambicano reflete sobre temas como espiritualidade, ateísmo, memórias e esquecimento, saudade e, é claro, o poder da poesia – ou melhor, de uma vida poética – na transformação do mundo. Confira abaixo:

Sua trajetória de vida é admirável. Em meio a uma família forte e uma guerra devastadora, construiu-se um poeta. De todas estas memórias, do que você mais sente saudades?

Mia Couto: Não sei do que tenho saudades. Já me esqueci. Tenho saudades da infância, porque foi um tempo muito feliz para mim. É como se eu tivesse sido condenado a ter aquela pátria e quem tem pátria é feliz. A infância não tem outra nação, se vive ali sempre. E eu trago muito isso comigo, portanto.

Mas, tenho saudades dos meus pais e dos meus amigos que morreram na guerra. Não tenho nenhuma hipótese de como se resolve isso, não tenho nenhuma solução. A África tem uma sapiência, da qual acho que estou impregnado, que é essa ideia de que os mortos não morrem e vivem dentro de nós. Sem isso não sobreviveria, porque alguns amigos foram assassinados durante a guerra de forma cruel.

Como fica a relação entre sentir-se preenchido pelos amigos que partiram, mas ter que apagar os horrores da guerra? Como lida com esta relação dentro de você?

Mia Couto: Esquecer é quase tão mentira quanto lembrar. Nós temos, em relação ao esquecimento, a ideia de que se trata de alguma coisa que acontece do ponto de vista neurológico, em um lugar qualquer onde as coisas se dissolvem e se afundam. Isso é verdade, sim, mas não é só isso.

O esquecimento é um trabalho ficcional. É preciso que essa história seja coberta por outra. O silêncio sobre o qual deitamos o passado é um silêncio que mente. Há qualquer coisa que fala sempre.

E o que fica da sua família neste processo?

Mia Couto: Eu acho que, em minha casa, meus pais me tinham como um retardado. Meus irmãos eram tidos como bons exemplos, que eram capazes de fazer coisas. Eles até evitavam me dar alguma tarefa, porque me saía mal, eu esquecia ou perdia.

A história é que não havia mais ninguém em casa e me mandaram à padaria, que era algo simples, a 200 metros de distância de casa. Eu fui e, passada uma hora, eu não havia regressado. Meu pai saiu e me encontrou nos degraus da padaria e perguntou o que eu estava fazendo. Respondi que o padeiro tinha me dito que a próxima fornada sairia em seis horas e eu estava esperando.

Para meu pai, que era poeta e me protegia pensando que havia qualquer coisa nesse menino que ia se revelar um dia, isso confirmou que eu tinha uma espécie de doença e, então, fez uma coisa que eu não esqueço: ele me escutou, o que é algo que temos dificuldade de fazer com uma criança.

Meu pai se sentou comigo e perguntou o que eu estava fazendo. Respondi que estava vendo as pessoas passarem e inventava histórias para cada um que passava. Meu pai entrou nesse jogo. Ele percebeu que essa sensação de tempo não me pesava e eu via o mundo de outra maneira, provavelmente.

E nos anos que prosseguiram? Como o jovem Mia Couto lidou com este sentido de tempo na escola e na faculdade, por exemplo?

Mia Couto: A literatura me salvou. O que me salvou, de fato, foi a poesia. A escola onde estudei era uma coisa muito cinzenta. O que aprendi na escola foi a escapar, a não estar onde eu estava. Já tinha uma certa habilidade, então, lembro que ficava em uma sala de aula com uma janela que dava para um pátio. Era um pátio pequeno, mas para mim tinha o tamanho de todo o mundo, era o infinito para mim.

Minha avaliação da escola dizia assim “esse aluno nunca faltou, mas também nunca chegou a estar presente”. E quando se chega à adolescência temos que fazer escolhas, eu queria ser tudo, eu queria ser todos e isso confirmava esse lado da normalidade. E eu lia Fernando Pessoa, que foi meu terapeuta. Aquela poesia, que dizia “ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, realizar em si toda a humanidade de todos os momentos”, me salvou.

Você pode mencionar algum autor em especial que teve este efeito sobre você?

Mia Couto: Jorge Amado. Eu era adolescente quando comecei a ler Jorge Amado. Acho que aconteceu comigo o que aconteceu com todos os outros escritores de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde. Ele acendeu, ali, um desejo de que, afinal, podemos trazer essa gente para dentro dos nossos livros, essa gente que estava nos livros do Jorge era a gente que passava em nossas ruas, era aquele cheiro, era aquela culinária, tudo estava lá. E, sobretudo, ele surgiu num momento em que eu estava tentando romper com aquele português padrão de Portugal. Isso nos ajudou a encontrar outro sabor da língua. Foi um momento mágico.

O que você diria para jovens escritores, fora ler Jorge Amado?

Mia Couto: Nunca olhar para alguém como um escritor experiente. Não existe isso. Nenhum escritor tem experiência. Escrever é uma coisa próxima de amar, nunca se tem experiência em amar. Ama-se sempre pela primeira vez e com risco, com esta coisa que parece que é a última vez.

Há vários jovens que batem à porta em Moçambique porque estão em uma situação muito solitária e não têm a quem apresentar seus textos. Converso muito com eles.

Uma das coisas que noto é que ficam prisioneiros de uma coisa que ninguém sabe exatamente o que é, que é ‘escrever bem’. Eu acho que essa é uma coisa que a escola, no sentido convencional da relação com a língua, com a gramática, pode matar um menino que fica com medo de errar. E ninguém escreve se tiver medo.

Mudando de assunto, queríamos concluir lhe perguntando sobre essa relação de maravilhamento que você tem com o mundo. Você já assumiu não crer em Deus, mas qual o espaço da crença em sua vida?

Mia Couto: Sou um ateu, mas sou um ateu não praticante. Isso significa que eu não tenho tanta crença assim, porque, para ser ateu militante, eu teria que ter uma crença maior que também não tenho. Estou aberto a escutar outras crenças e a ter essa relação com aquilo que, sendo eu um cientista, me faria perdido. Eu sou muito disponível para aquilo que é o lado misterioso, inexplicável.

Quando estou integrado em uma cerimônia religiosa, não estou lá para assistir ou conferir veracidade naquilo, não. Estou lá para ser tomado, para ser possuído, para ir até onde puder. Acho que, para mim, o sentimento religioso é produzido por essa capacidade de me dissolver na beleza, eu vejo, eu sinto, música, eu vejo uma paisagem em um quadro. Nesse momento, posso ficar comovido até as lágrimas diante da beleza. A religiosidade, para mim, é essa capacidade de encontro com aquilo que nos coloca como personagens de um enredo muito maior.







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