Texto originalmente publicado no site Justificando

Até que se prove o contrário, o homem só pode existir no planeta Terra e, para isso, seguindo as Leis da Física, necessita de um espaço delimitado no planeta. Trata-se efetivamente de um espaço físico no solo.

É com base nessas leis da existência que devemos partir para compreender a noção de direito à moradia, nos moldes dos tratados de Direitos Humanos, assinados após as duas grandes guerras e as experiências humanas da escravidão, do nazismo e do fascismo.

Naturalmente, portanto, o homem sempre ocupou o planeta Terra e, no nosso caso, sempre ocupou o espaço da Terra que chamamos de Brasil.

Há homens e famílias que nasceram nesse espaço da Terra, como os índios; e outros que vieram para esse espaço da Terra, como por exemplo os colonizadores, os imigrantes e os escravos.

Todos ocupamos a Terra como condição de existência e delimitamos espaços para garantir uma existência familiar, social e digna.

Mas, no final do século XIX, com o processo de abolição da escravatura, algumas ocupações foram legitimadas e outras não. Desde então, no Brasil, há pessoas que podem ocupar o planeta e outras que são perseguidas por essa tentativa.

A pressão dos movimentos de trabalhadores escravos e da estrutura do capitalismo mundial obrigaram o Brasil a alterar a estrutura da mão de obra, notadamente com a abolição da escravidão. Esse processo foi gradual e combinado com a construção de uma estrutura jurídica que legitimasse a ocupação de latifundiários e deslegitimasse a ocupação de escravos libertos.

Sendo mais claro, no processo de abolição da escravatura, a elite brasileira construiu uma estrutura jurídica para considerar que a posse de alguns seria “propriedade” a ser defendida, inclusive pelo Estado, e a de outros, escravos libertos, seria “invasão”, a ser combatida, também, pelo Estado, ou pela legítima defesa da posse-propriedade.

Por isso, não é mera coincidência que os projetos que tratavam da abolição da escravatura caminharam junto com os projetos que regulamentavam e discriminavam as posses de terrenos no Brasil.

Como marcos legislativos desse processo, podemos citar:

A Lei que proibiu o tráfico de escravos (4.9.1850);
A Lei de Terras, que legitima a propriedade sobre terrenos (18.9.1850);
O decreto que trata das medições e legitimação das propriedades (30.1.1854);
Lei do ventre livre (1871);
Lei dos sexagenários (1885);
Lei áurea (1888).
Gadelha, ao estudar o processo legislativo do período, destaca:

“No Projeto de 1843, a classe rural abastada enfatizava a necessidade de impedir a posse gratuita das terras aos menos favorecidos. Tornara-se, claro, que enquanto houvesse terra em abundância, o trabalhador livre poderia sempre se fixar ao solo. (…)

Era finalidade principal da Lei de Terras ‘destruir as antigas formas de apropriação do solo’. O fato é que a terra, até então, quase nenhum valor possuía entre nós. ‘A terra deve adquirir valor e os proprietários renda´, argumentava o Deputado Barbosa, representante do Rio de Janeiro, porém, no sistema, para explorar e dominar o trabalho. (…)

A Lei fixaria, portanto, o preço da terra para os posseiros, mas desconsideraria os roçados simples como característica da posse. Restringia-se, assim, a possibilidade da pequena propriedade, preservando-se, ao mesmo tempo, a estrutura da propriedade.”

Desde então, a ocupação de alguns é propriedade e a de outros, invasão.

O Capitalismo foi se modificando e as estruturas urbanas se organizando, de forma a deslegitimar a ocupação de terras pelos descendentes de escravos.

Por exemplo, em locais como as cidades do Alto Tietê, da Região Metropolitana de São Paulo, foi preciso legitimar a posse também da especulação imobiliária, ou seja, considerar propriedade porções de terra de quem nunca a ocupou, para deslegitimar a posse da terra pelos descendentes de escravos, que só podem acessar a posse da terra, ou seja, garantir um lugar de existência do planeta, se comprarem a posse ou a alugarem dos proprietários.

Esse sistema, atualmente, impede não só a existência no planeta, mas também o reconhecimento da cidadania e o acesso a direitos básicos.

Vamos a um exemplo prático e atual

Itaquaquecetuba é uma cidade da Região Metropolitana de São Paulo, com aproximadamente 320.000 habitantes, segundo dos dados oficiais, pois há praticamente o mesmo número de pessoas que ocupam o Município, mas são considerados invasores e não são contabilizadas nas estatísticas.

A cidade, que foi batizada como taqua quicé tuba, conjunto de taquaras afiadas, pelos primeiros ocupantes, índios, é lugar de grandes propriedades, legitimação de ocupações nunca exercidas, da especulação imobiliária. Muitos legitimaram uma posse nunca exercida como propriedade e abandonaram essas terras para aguardar o momento do lucro.

Nesse período a cidade foi ocupada por humanos, que constituíram família e sociedade e, hoje, são considerados invasores.

O momento do lucro chegou e esses proprietários, que nunca sequer visitaram Itaquaquecetuba, utilizam a máquina judiciária do Estado para a reintegração de posse, acusando os humanos que habitam esse espaço de invasores.

Em reuniões oficiais com os Secretários da cidade é comum se ouvir que essas pessoas não são cidadãs de Itaquaquecetuba, mas invasores.

Ora, se são invasores do espaço de terra que ocupam no planeta, não são cidadãos do Estado, do Brasil, ou do Mundo, e são, portanto, invasores do planeta Terra.

Quando os órgãos oficiais da cidade consideram essas pessoas invasoras e negam acesso a direitos básicos, com negativa de entrega do carnê de impostos (ex. IPTU), negam também acesso à cidadania, sem endereço oficial para correspondência ou comprovante de residência fixa para o aparelho repressivo do Estado, sem acesso ao sistema de distribuição de renda ou de planos para regularização da moradia, etc.

Os exemplos continuam…

Há um acordo explícito e, em algumas cidades, implícito, das concessionárias de serviço púbico, como a SABESP, de saneamento básico, e a Bandeirantes, energia, para negar acesso a esses serviços aos cidadãos que a Prefeitura considerar invasores e não disponibilizar o carnê do IPTU. Assim os invasores do planeta não podem acessar bens e serviços básicos à existência, como água potável, saneamento e energia elétrica.

A Bandeirantes, por exemplo, ao ser acionada por esses invasores, através da Defensoria Pública, responde que não fornecerá energia elétrica aos cidadãos sem ocupação regularizada, mesmo com ordem judicial, como é o caso de uma liminar não cumprida desde dezembro de 2016, quando o Judiciário determinou a ligação de energia elétrica para uma família de uma mulher e duas crianças, que passaram as festividades do final do ano no escuro e sem lugar para guardar os alimentos.

Essas pessoas, desde a estratégia da abolição da escravatura, com a Lei de Terras, não são benvindas no planeta Terra e são consideradas invasoras.

As famílias buscam as concessionárias para a ligação de água, esgoto e energia elétrica, mas têm os serviços negados, mesmo apresentando documentação e dispostas a pagar pelo serviço, pois não têm sua ocupação no planeta legitimada e, se arriscarem, pela sobrevivência, pegar energia ou a água potável para a sobrevivência, o Estado reponde com a prisão, mesmo cautelar, por falta de comprovação de residência fixa.

Ou seja, aos invasores do planeta Terra, descendentes dos escravos libertos, não há espaço para a existência e, se insistirem na invasão, serão confinados às prisões.

Anderson Almeida da Silva é Defensor Público do Estado. Coordenador Regional da Escola da Defensoria. Mestre em Políticas Públicas, Bacharel em Direito e em História.







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