Por João Marcos Buch – autor e desembargador substituto

“Doutor, sabe aquele apenado que auxiliou na tradução em Libras em uma audiência de justificação?”
“Sim. O que houve?”
“Foi morto na unidade prisional.”

Tendo deixado a Vara de Execuções Penais há algum tempo, depois de mais de 11 anos atuando diretamente com o sistema de justiça criminal e penitenciário, não era fácil para mim lembrar dos milhares de apenados que haviam passado por audiências comigo. Entretanto, daquele apenado eu lembrava, e bem!

Na época, entre tantos processos envolvendo falta grave, um deles tratava de indisciplina cometida por detento surdo, que se comunicava por Libras. Antes do julgamento, era preciso realizar uma audiência de justificação, ato destinado a se ouvir o acusado e de lhe conferir a ampla oportunidade de defesa, acompanhado de advogado ou defensor público. Eu precisava, então, de um tradutor e, na falta de alguém do estado, no tempo que necessitávamos, informaram-me que havia um detento que sabia Libras. Pedi que lhe perguntassem se poderia acompanhar a oitiva em questão. Ele aceitou imediatamente.

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Poucas vezes vi alguém tão disposto a ajudar. A audiência se realizou de uma maneira muito tranquila, o apenado surdo ficou seguro para transmitir toda sua versão dos fatos, que envolviam desobediência à ordem de um policial penal. Mais tarde, depois da manifestação do Ministério Público e da Defesa, decidi pela absolvição. A versão do acusado era a mais próxima da verdade, na minha ótica. Na mesma decisão, determinei à direção prisional que anotasse em ficha um elogio, a Lei de Execução Penal assim prevê, ao apenado tradutor, pelos prestimosos serviços prestados.

Não recordo por qual crime ele cumpria pena, não sei dizer se fora algo grave, violento ou envolvia tráfico de drogas. O que sei é que, quando da audiência, ele tinha sido atencioso, paciente, interessado e destinara atenção integral a mim e ao apenado surdo. E estava tão alegre! Parecia uma criança em dia de praia.  Sua morte, em princípio, envolvera conflitos internos entre detentos. As responsabilidades seriam apuradas, por lei. A mim, já não cabia mais ato algum, apenas lamentar.

Nosso país leva milhares de jovens vulnerabilizados, em sua maioria negros, para as prisões. Não satisfeito, na interminável necropolítica, reprodutora escravocrata das castas e da desigualdade, ele os leva à morte. É duro ver crianças pobres, jovens carentes, rapazes e moças marginalizados, que por terem nascido do lado de lá da cidadania, são esquecidos ao longo de suas trajetórias, exatamente por quem tem o dever inafastável de por eles olhar e proteger, de ofertar oportunidades para crescimento digno, o estado.

Que nação é essa? Voltamos as costas para a cárcere e o sofrimento humano que nele reside, fazemos de conta que esse mundo não existe. Mas ele está lá, com sangue correndo em suas veias abertas. Independentemente dos motivos que levam à prisão, das histórias originárias, das responsabilidades, no cárcere existem seres humanos, pessoas que tiveram e têm sonhos, que, à sua maneira, como todos, desejam a felicidade.

Tão certo o poeta John Donne! A morte de qualquer homem nos diminui, porque na humanidade nos encontramos envolvidos. Desta vez, os sinos dobraram dentro da prisão, dobraram por nós, por mim, e dobraram por ti, apenado tradutor.

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